O mito do herói imigrante que faz fortuna com suor e trabalho encobre a escravização do século XXI. Entrevista especial com Carla Menegat

Para historiadora, o caso recente de trabalhadores em situação análoga à escravidão em Bento Gonçalves, na Serra Gaúcha, revela “que nem todo trabalhador, mesmo que trabalhe arduamente, tem direito a ter sua própria fortuna”

Por: João Vitor Santos, em IHU

Agora no final de fevereiro, uma notícia aterrorizante encharcou os noticiários: 207 pessoas foram resgatas depois de submetidas a um regime de trabalho análogo à escravidão, com direito a pouca comida, uso de spray de pimenta e banho frio, entre outras atrocidades. O fato ocorreu em Bento Gonçalves, na serra do Rio Grande do Sul, autoproclamada como uma das regiões mais desenvolvidas do Brasil.

Quase tão horripilante quanto o fato em si foi a reação de autoridades e comunidade local, ao defenderem que o caso dos trabalhadores trazidos da Bahia foi uma situação isolada na colheita da uva e que as três vinícolas – Aurora, Salton e Cooperativa Garibaldi – não sabiam o que se passava porque essa mão de obra era terceirizada. “Empresas que contratam terceirizadas têm a obrigação de fiscalizar as condições de trabalho e contrato de quem está a serviço da contratada. Cartas de pesar não bastam, é preciso apurar responsabilidades e impor consequências, sob pena de que perpetuemos a ideia de que a lei serve apenas para alguns”, enfatiza a historiadora Carla Menegat.

A afirmação de Carla parece óbvia, mas, na entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, ela revela que há pelo menos uma grande questão estrutural nessa história: o mito do herói imigrante que sai da Europa como desvalido e, com o suor de seu trabalho, faz fortuna no Brasil. “O mais grave, e até um pouco contraditório, é colocar o imigrante como um desesperado que atravessa o Oceano por não ter alternativa e, com isso, retirar toda sua capacidade de escolha”, observa. Segundo a historiadora, havia redes de apoio, e muitos imigrantes chegam a partir do contato e apoio desses grupos, empreendendo práticas que tinham em seu país de origem.

O problema é que a constituição de uma narrativa laudatória e ufanista desse passado torna o imigrante um herói, sob a justificativa de preservar suas histórias e origens. O mito que se estabelece não só apaga os processos de cooperação e toda experiência pregressa como também torna uns sujeitos mais dignos ao sucesso do que outros. A historiadora, que também é descendente de imigrantes italianos, argumenta: “eu não acredito que honrar meus antepassados seja transformar eles em mitos. Eu acredito na honestidade que herdei deles, no meu caso foi só isso mesmo, ninguém alcançou fortuna com seu trabalho”.

Carla também destaca a importância da compreensão de que “os imigrantes foram inseridos aqui num grande processo de tornar grupos sociais despossuídos da terra e que isso começa em 1850. As mesmas pessoas que lucravam vendendo a terra para os imigrantes eram as pessoas que, em geral, invalidavam a possibilidade de mestiços, brancos pobres, caboclos e quilombolas reivindicarem títulos para as terras que ocupavam, muitas vezes por gerações”.

Para ela, mudar essa realidade é assumir que “quando falamos de imigração, nossa cultura nos leva imediatamente a pensar na imigração europeia, especialmente essa que não é portuguesa. (…) É um projeto de embranquecimento. Ao embranquecer a narrativa da sociedade gaúcha, é preciso depreciar tudo que não remete ao europeu e apagar aquele que não é o branco europeu. Por isso nunca nos referimos a nenhum outro processo como imigração”, acrescenta. Para romper isso, é preciso investimento intenso em educação para as relações étnico-raciais. “Faltam-nos políticas públicas de memória, nos falta política educacional, nos faltam ações de história pública. E isso tem que ser política de Estado”, indica.

E, se apesar de tudo, ainda há quem considere este caso um exagero, um fato isolado pelo qual não se pode criminalizar toda a cultura italiana da Serra Gaúcha, Carla encerra com uma provocação: “como pode aquele que enriquece com seu próprio trabalho precisar escravizar 207 pessoas, não em 1875, quando começa a imigração, mas 2023?”.

Carla Menegat possui graduação, bacharelado e licenciatura em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. É mestra e doutora em História pela mesma instituição, tendo realizado estágio de doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Leciona no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-Rio-Grandense – IF-Sul. Suas pesquisas têm ênfase em História da Bacia do Rio da Prata, atuando principalmente em história do Rio Grande do Sul, caudilhismo, Revolução Farroupilha, estratégias e fronteiras.

Confira a entrevista.
IHU – 200 trabalhadores trazidos da Bahia estavam vivendo em condições de trabalho análogas à escravidão em Bento Gonçalves, na Serra Gaúcha. O que isso revela sobre o Brasil de hoje e nossa relação com a escravização desde o século XVI, quando da chegada oficial dos colonizadores?

Carla Menegat – O Brasil teve 2.575 pessoas resgatadas de situações de trabalho análogas à escravidão em 2022, atingindo um índice de 60.251 trabalhadores resgatados nessas condições desde a criação dos grupos especiais de fiscalização móvel em 1995 (dados do Ministério do Trabalho e Emprego). Isso diz muito sobre a permanência de uma percepção de que algumas pessoas não merecem dignidade em relação a outras e que seus corpos estão disponíveis para serem explorados.

É importante marcar que, durante os 350 anos em que a escravidão foi legalizada no Brasil, existiam regulações e essas de certa forma abriam algumas brechas para a resistência dos escravizados, seja através da busca por alforrias, seja em projetos de liberdade coletivos, como os quilombos. O que vemos aqui é o extremo oposto, é a resistência fora da lei de grupos da sociedade brasileira à ideia de que todos os cidadãos brasileiros têm direitos e que as atividades econômicas têm limites que não podem atentar contra a dignidade do outro.

Esse quadro revela como não realizamos, enquanto sociedade, uma transição completa da abolição da escravidão, como não construímos um pós-emancipação que realmente construísse a percepção (e o fato) de que os ex-escravizados – e, por consequência, seus descendentes – eram cidadãos brasileiros, com plenos direitos.

IHU – Em que medida o caso de Bento Gonçalves tensiona a máxima, existente na região de colonização italiana e alemã no sul, de que “os colonos que vieram para o Brasil sem nada e fizeram fortuna apenas com seu trabalho”?

Carla Menegat – É interessante como esse tensionamento foi imediatamente apontado por muitas pessoas nas redes sociais. Primeiro, foi um caso evidente de exploração ilegal de pessoas, o que não coaduna com essa imagem de que as fortunas dos descendentes de italianos (e outros imigrantes europeus) são fruto exclusivo de trabalho destes próprios imigrantes. Talvez, a grande questão esteja justamente nesse episódio revelar que nem todo trabalhador, mesmo que trabalhe arduamente, tem direito a ter sua própria fortuna.

Depois da descoberta de cerca de 200 trabalhadores vivendo em condições de trabalho análogas a da escravidão na Serra Gaúcha, muito se criticou por aqui a cultura do “fizemos nossa fortuna com nosso trabalho” que os descendentes de italianos propagam.

A segunda questão, bem-marcada nesse episódio, é a de se perguntar ao trabalho de quem se refere a afirmação. Quem enriqueceu com o trabalho das pessoas escravizadas, em sua maioria trabalhadores recrutados na Bahia, foram aqueles que os contrataram, seja diretamente, seja de forma terceirizada.

IHU – Como podemos compreender esse imaginário de sucesso e fortuna que, inclusive, confere um ar de superioridade sobre outras populações do Brasil, tecido nas colônias do Rio Grande do Sul?

Carla Menegat – Esse discurso de prosperidade cria um mito de terra sem desigualdades. Esse imaginário não é de todo único, ele é uma releitura da ideia de que “nessa terra tudo dá”, claro com os contornos muito particulares que os eventos da segunda metade do século XIX em diante trazem consigo. Estamos falando de um imaginário que se funda numa sociedade que nasce como um processo periférico da Segunda Revolução Industrial, então essa ética do trabalho e de seu valor, de que não trabalhar e, portanto, não estar disponível para ser um trabalhador não é compatível com a ética burguesa que surge nesse momento.

Nada melhor do que revestir com uma nova roupagem um processo exploratório do território usando a ideia de que essa é uma terra de sucesso e fortuna, basta empenho. E, nesse quesito, é extremamente importante entender que, para que esse imaginário se realize, é preciso conferir ao imigrante capacidades únicas, que o permitiram transformar aquilo que os outros não conseguiram antes.

Essa é a fonte desse ar de superioridade que os imigrantes europeus costumam receber sobre outros povos, como indígenas, negros e mestiços, que inclusive foram desalojados dos territórios que formaram a maior parte das colônias. Acho importante dizer que o período da imigração europeia para o Brasil também acompanha o surgimento de teorias racistas no Velho Mundo, teorias que, depois, fundamentarão ideias perversas como a de que a mestiçagem gera criminosos, de que os indígenas são povos infantis ou que pessoas negras não são capazes de aprender.

O mito de “não trabalham para tanto”
Nesse processo, temos o surgimento de outra concepção muito equivocada, a de que aqueles que não prosperam, assim o fazem porque não trabalham para tanto. Essa percepção se perpetua às vezes de forma anedótica, com memes como aquele do mapa do Brasil destacando o Sul e dizendo que, enquanto o resto do país pula carnaval, aquela região trabalha, desmerecendo uma festividade que gera bilhões de reais e que tem uma importância cultural e religiosa imensa.

Às vezes, perpetua-se de forma escancaradamente perversa, como vemos na nota do Centro da Indústria, Comércio e Serviços de Bento Gonçalves. Seu texto sugere que existe uma parte da população que vive sem trabalhar porque recebe benefícios sociais e que, portanto, deveria ser forçada a ser produtiva economicamente, justificando, com isso, a situação de trabalho análogo à escravidão em que os trabalhadores se encontravam.

O último parágrafo desta nota, sem o verniz hipócrita das notas oficiais, diz o seguinte: A falta de mão de obra fez com que escravizassem, pois os pobres vivem de Bolsa Família e poderiam estar trabalhando pra nós.

Veja bem, para além de dezenas de pesquisas robustas que demonstram que pessoas assistidas por programas sociais buscam estas iniciativas como uma forma de transição para acessarem possibilidades sociais que não lhes são ofertadas, e nisso cito a pesquisadora Denise de Sordi da Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz como referência no assunto. Esse discurso acaba por justificar condições indignas de trabalho, negação de direitos trabalhistas e sociais e o lucro acima da vida humana. Foi assim em muitos momentos históricos, e é lamentável ver esse processo se repetindo hoje.

IHU – Quem eram os imigrantes europeus que vieram ao Brasil e o que se sabe acerca daquele contexto?

Carla Menegat – Grosso modo, a historiografia reconhece dois grandes fluxos de migração europeia para o Brasil nas últimas décadas do século XIX e início do século XX: um orientado para as lavouras de café do interior de São Paulo e norte do Paraná, que também acaba alimentando as grandes cidades do Sudeste que estão se industrializando, Rio de Janeiro e Santos/São Paulo.

O outro é o fluxo migratório para construir colônias de pequenos agricultores no Rio Grande do Sul e, depois, em Santa Catarina e no Paraná. Eu consigo falar com mais propriedade sobre os imigrantes que vieram nesse segundo fluxo, para formar colônias de agricultura familiar. Os dois maiores grupos eram compostos por alemães e italianos, que migravam em família e em geral vinham de territórios que tinham passado por processos de guerras constantes desde a metade do século XIX, graças aos processos de unificação desses países. Eram europeus pobres vivendo grandes mudanças nos estatutos da terra em seus países.

Os italianos, por exemplo, viviam uma disparada nos preços do mercado fundiário, tornando extremamente difícil para um camponês pobre ter qualquer perspectiva de adquirir terra ao longo da sua vida. A grande maioria trabalhava como meeiro, ou seja, arrendava a terra em troca de um percentual da produção que, em geral, começava em 50%. Era um contexto de muita pobreza acentuado pela crise econômica que se instaurou na Europa entre 1873 e 1896. Além disso, o fim dos estatutos feudais de algumas regiões com a Unificação acaba por expulsar algumas pessoas das terras em que viviam e isso também impulsiona a crise urbana.

Imigrante sim, mas não despreparado
Eu acho importante pontuar que hoje sabemos que essa situação não coloca os imigrantes como seres desesperados que se atiravam ao desconhecido por falta de alternativa. É superimportante ressaltar que fome e guerra eram contextos comuns ao camponês europeu, que eram alimentados pela memória geracional. Inclusive, algumas das músicas cantadas por corais tradicionais contam histórias sobre eventos dessa ordem, assim como alguns dos “contos”, histórias para serem contadas nos encontros conhecidos como serões, algumas inclusive com tom anedótico.

Além disso, a imigração para o Brasil era uma de tantas alternativas ofertadas a esses indivíduos. O mais grave, e até um pouco contraditório, é colocar o imigrante como um desesperado que atravessa o Oceano por não ter alternativa e, com isso, retirar toda sua capacidade de escolha.

IHU – O que diferencia o modo de produção dos colonos na Europa com o que ocorre depois no Brasil? Como essa diferença vai pesar e moldar, por exemplo, a forma de desenvolvimento e governança na Serra Gaúcha?

Carla Menegat – Hoje, com acesso à produção historiográfica sobre camponeses italianos e seus padrões sociais e de produção, é possível entender que muitas estratégias que os colonos construíram aqui repetiam modelos que eram vividos em regiões agrícolas da atual Itália. O estudo fundamental de Giovanni Levi sobre os camponeses do Piemonte, por exemplo, mostra que o sistema de manejo e administração da propriedade em família, mesmo que não se mantenha a coabitação entre todos os membros, tão comum entre colonos com propriedades médias e pequenas da Serra Gaúcha, tinha raízes bem calcadas na origem dos colonos.

No caso das colônias alemãs, a forma como as comunidades protestantes se organizavam comunalmente garantiu o surgimento de escolas antes de outros lugares. E, também, sistemas cooperativos, especialmente de crédito, que rapidamente se popularizaram nas mais diferentes colônias como uma forma de fugir dos prestamistas, ou agiotas como os chamamos hoje. Além disso, em comunidades mais afastadas do poder estadual, colonos costumavam organizar rondas de segurança, especialmente quando grupos de bandoleiros assolavam a região.

Contudo, essas alternativas que buscavam suprir lacunas da atuação estatal tiveram também o efeito complicado a longo prazo de não aceitação das regulações que são responsabilidade do Estado. No geral, não eram só as regulações do Estado, mas as comunidades assumiram como tendência se tornarem mais refratárias àquilo que vinha dos que não eram imigrantes ou seus descendentes.

Governo Vargas
De fato, em alguns momentos o Estado teve uma ação discriminatória e autoritária, como no período da Segunda Guerra Mundial. Nesse momento, o governo Vargas proíbe o uso das línguas italiana e alemã e persegue principalmente colonos pobres e trabalhadores industriais ligados a movimentos anarquistas e comunistas. Mas não é isso que ocasiona esse comportamento de rejeição por parte dos habitantes da Serra.

Se pensarmos no mesmo governo Vargas, veremos que também foi obra sua a construção da BR-116, que transformou a região num dos maiores polos industriais do país. O processo é anterior e tem raízes na forma como esses mesmos imigrantes não eram francamente incorporados na sociedade brasileira.

IHU – Voltando à ideia de que os imigrantes vinham ao Brasil “no escuro”, há uma historiografia que reforça esta perspectiva. Como essa visão é forjada e como, de fato, se constituíam as articulações que culminaram em imigrações?

Carla Menegat – De fato, existiu um processo de recrutamento de imigrantes que incluiu fábulas como a da Cucagna, o país da fortuna, onde corriam rios de vinho, de leite e de mel, entre outras promessas de maravilhas. Esse tipo de recrutamento foi duramente combatido pelas autoridades italianas e, por isso, temos registros abundantes dele, com muito material na imprensa e de órgãos oficiais.

Por muito tempo, os historiadores da imigração, especialmente aqueles que eram descendentes de imigrantes, baseados na abundância de fontes que indicavam esse recrutamento, corroboram a ideia corrente, em literatura da imigração, de que essa era a realidade generalizada dos imigrantes. Contudo, hoje, com outros métodos e utilizando outras fontes (múltiplas fontes) e dados mais robustos, podemos afirmar que essa não foi a realidade da grande maioria dos imigrantes. Claro, após a instalação das colônias e a chegada dos primeiros imigrantes, esses sim, com poucas informações palpáveis sobre seu destino.

O processo de imigração
O processo mais comum de recrutamento para a imigração era algum conhecido que já havia imigrado escrever contando sobre as vantagens de imigrar e oferecendo algum tipo de ajuda ou orientação nesse processo migratório. Alguns colonos eram pagos para escrever para seus parentes e amigos na Itália incentivando a imigração.

Em geral, as pessoas migravam com algum tipo de economia, prevendo a entrada na compra de terras. Apesar de serem poucos os colonos que receberam terras, pois foram apenas os primeiros a chegar, a compra de terras era facilitada para os imigrantes. A começar que lhes era oferecida a terra para venda. Além disso, existiam essas redes de suporte que favoreciam a imigração, organizando os imigrantes desde a chegada em circuitos comerciais que escoavam os produtos. Muitas vezes, o Estado formava frentes de trabalho remuneradas com os próprios colonos para abrir novas áreas, estradas, poços. Obviamente isso favorecia muito mais financeiramente aqueles que vendiam as terras, que eram atravessadores nessas redes que escoavam a produção, nessa relação com o Estado.

IHU – Que relações podemos estabelecer entre a forma como indígenas, mestiços, caboclos e mesmo negros escravizados foram tratados pelos imigrantes com esse fato recente de trabalho análogo a escravidão na serra gaúcha?

Carla Menegat – Muitos colonos receberam terras que eram ocupadas por indígenas, mestiços, quilombolas. Em geral o conflito foi aberto, inclusive existem relatos do envio de grupos de colonos para ameaçar os indígenas até que estes saíssem da terra. Mestiços, caboclos e quilombolas eram considerados invasores, dado que não tinham título de propriedade da terra.

É importante entendermos que os imigrantes foram inseridos aqui num grande processo de tornar esses grupos sociais despossuídos da terra e que isso começa em 1850. As mesmas pessoas que lucravam vendendo a terra para os imigrantes eram as pessoas que, em geral, invalidavam a possibilidade de mestiços, brancos pobres (esses também existiam), caboclos e quilombolas reivindicarem títulos para as terras que ocupavam, muitas vezes por gerações.

Lei de Terras e Lei Eusébio de Queiroz
O esforço de tornar a zona que foi dedicada para as colônias de imigrantes em “terra vazia” é herdeira do processo que não identifica a posse da terra por essas pessoas há séculos no Brasil, mas que assumiu um novo tom com a criação do mercado fundiário, com a Lei de Terras de 1850. Essa lei é criada no mesmo ano da Lei Eusébio de Queiroz, que encerra o tráfico de escravizados. São duas leis consideradas complementares, porque uma libera um capital imenso que estava investido em trazer pessoas escravizadas ilegalmente da África, e a outra permite a compra e venda de terras, mas isso não poderia ser para todos.

E se negros, mestiços e indígenas não podem ser proprietários de terra, o que lhes sobra? A indignidade de aceitar qualquer condição de trabalho. Eu acho que tem uma reflexão muito importante a ser feita sobre o episódio da escravização dessas pessoas em Bento Gonçalves, porque elas oficialmente trabalhavam para uma empresa terceirizada, contratada por outras empresas. Se essas pessoas fossem contratadas com todos os direitos trabalhistas e se houvesse responsabilidade das empresas para as quais elas trabalham de fato e não por contrato, seria possível essas explorações desumanas do trabalho e da vida delas?

E mais: se os antepassados dessas pessoas não tivessem historicamente sido privados de todos os acessos que os imigrantes europeus e seus descendentes tiveram, estariam essas pessoas sujeitas a condições de trabalho análogas à escravidão?

IHU – A senhora destacou, em suas redes sociais, a existência de uma narrativa que reforça o homem como aquele que deve dominar a natureza e isso se materializa na figura do colono, que traz a civilização e o desenvolvimento. Gostaria que detalhasse essa perspectiva e analisasse como hoje essa narrativa se revela no discurso da Serra como região próspera e desenvolvida.

Carla Menegat – Quando comentei antes das qualidades do colono no discurso da prosperidade – ou como tu chamaste, do sucesso e fortuna –, eu comecei a falar disso. Essa ideia do homem que domina a natureza é muito presente no fim do século XIX, início do XX e vamos encontrá-la ele em outros lugares da América.

No entanto, ela toma uma conotação particular na Serra Gaúcha porque em cerca de 50 anos as colônias realmente ocuparam toda a região, e algumas cidades, como Caxias do Sul, despontam como cidades industriais importantes. E, após a Revolução de 1930, tudo passa a ser sobre industrializar o Brasil.

É também esse o momento em que as colônias são incorporadas na política regional, e, portanto, toma forma esse processo de ressignificação do colono, que era esse pobre camponês ignorante, para esse homem cheio de habilidade e provido de uma coragem sobre humana. O Rio Grande do Sul tem várias obras desse período financiadas pelo estado que constroem essa narrativa, algumas delas com inspiração no fascismo italiano.

Um caso exemplar é o Monumento ao Imigrante na BR-116, em Caxias do Sul, onde um casal – a mulher carregando um bebê, o homem uma enxada – mira a cidade tendo ao fundo três elementos: a chegada ao Brasil, a vitória pelo trabalho e a integração à pátria. É importante dizer que esse discurso de domar a natureza era uma marca do discurso nacionalista do período, afinal, o bom brasileiro era aquele que transformava os recursos naturais em riqueza. E nesse momento é fundamental afirmar que esse descendente de imigrantes é brasileiro, inclusive motivando-o a expandir esse espírito para outros lugares do Brasil.

IHU – Gostaria de compreender transformação do colono italiano agricultor, que domina a terra na Serra Gaúcha, para o industriário de sucesso. O que há por trás dessa história, para além de uma narrativa de sucesso e louros de poucas famílias?

Carla Menegat – Tem uma diferença brutal entre o colono e o industrial. Antes de mais nada, o colono é agricultor e vive com sua família na terra. O industrial é o proprietário da fábrica. Nem todo imigrante era camponês; é importante dizer que alguns imigrantes eram artesãos e trabalhadores urbanos altamente especializados. Essas pessoas migram e ocupam papéis bem destacados na sociedade da imigração.

Por vezes, vão ser esses artesãos que se tornarão os prestamistas da comunidade, dado que tem uma capacidade maior de disponibilizar capital, porque não imobilizam ele na terra. Essa é a origem da capacidade de investimento de alguns. Outros serão aqueles indivíduos que terão posições privilegiadas nas redes de compra e venda de terras, escoamento de produtos agrícolas, relações com autoridades do Estado. A desigualdade social nas colônias vai existir desde o início. Vão ser essas pessoas que acumularam dinheiro se beneficiando de sistemas de crédito precários ou do controle de caminhos que vão ter capital para investir nas primeiras indústrias.

Algumas pesquisas mostram que a vida nas primeiras indústrias da região colonial não era nada exemplar. Algumas das mais importantes fábricas da região se beneficiaram de trabalho infantil, da remuneração inferior para mulheres, da contratação de colonos que não eram italianos por valores menores e tinham práticas discriminatórias que impediam a contratação de negros e mestiços.

A construção da estrada de ferro na região também foi marcada por situações de trabalho que infringiam os direitos humanos e que, por vezes, remetiam à escravidão. Existe um mundo de exploração no processo de industrialização da Serra Gaúcha ainda sendo estudado.

IHU – Olhando para esse passado de dominação do colonato no Brasil, é impossível imaginar que não houvesse resistência. Como elas ocorriam? E o que reverbera dessas resistências ainda hoje?

Carla Menegat – Dentro das colônias, as experiências de resistência que mais reverberaram certamente são as coletivas. A grande maioria delas se constituem em experiências que envolvem romper com situações de exploração. E é interessante comentar que existem duas influências muito importantes que transitam nas colônias nesse momento e que são concorrentes. Uma delas é o humanismo católico, que traz uma perspectiva dentro da fé romana de que a comunidade é o espaço de apoio daqueles que são menos favorecidos. A outra é o anarquismo, que vem com alguns imigrantes que tinham uma vida de trabalhadores de indústrias na Itália e que prega, principalmente, que nenhum ser humano tem o direito de explorar o outro. Nesse sentido, o cooperativismo de muitas formas acaba se tornando a experiência mais buscada.

Società Tevere e Novità
Existiram várias experiências interessantes. Uma delas foi a Società Tevere e Novità, uma cooperativa têxtil na localidade de Galópolis, em Caxias do Sul, que funcionou de 1906 a 1912 e que foi criada por trabalhadores oriundos da cidade italiana de Schio. É uma experiência linda, que fala muito da dignidade que se pode adquirir ao trabalhar coletivamente pensando no desenvolvimento das condições da comunidade.

A experiência termina por conta das dificuldades que os imigrantes encontram com capital, matéria-prima e escoamento, e a fábrica é absorvida por uma empresa da capital. As experiências cooperativas industriais vão ser retomadas na região ao longo das décadas de 1990 e 2000, quando algumas indústrias decretam falência e os trabalhadores se organizam para tomar o controle das operações.

O caso das vinícolas
A própria história da maior parte das vinícolas da Serra envolve o sistema cooperativado, em que várias famílias se reuniam para poder beneficiar sua produção de uvas e produzir o vinho. Produzir os tonéis de vinho, fazer a manutenção, realizar a maturação, tudo isso exigia um investimento que se tornava oneroso para a maior parte das famílias individualmente, mas em sistema de cooperativa era possível organizar a produção e adquirir melhores preços, fugindo também dos atravessadores.

Algumas vinícolas ainda funcionam assim, mas não mais com o mesmo peso político de resistência, como o caso de trabalho análogo à escravidão mostra. Contudo, essa experiência cooperativa vai ser a alternativa de resistência encontrada por agricultores que vão, a partir dos anos 1990, optar pela produção de produtos ecológicos em sistemas familiares e que realizarão o beneficiamento de alguns desses produtos em agroindústrias.

Algumas dessas cooperativas são pioneiras na América Latina, como o Centro Ecológico de Ipê, a Aecia, de Antônio Prado, e a Econativa. Nessas cooperativas, os agricultores encontraram condições de se manter na terra, de produzir alimentos com os quais eles se sentem eticamente alinhados e onde podem resistir aos processos de mudanças climáticas com tecnologias e assessoria especializada. Não se trata mais de domar a natureza, mas de ser parte dela.

Eu acredito que esses movimentos cooperativos de resistência também sejam parte do repertório que informa a atuação de movimentos, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST e o Movimento de Trabalhadoras e Trabalhadores por Direitos – MTD na sua origem. Inclusive, em algumas cidades onde existem assentamentos desses movimentos na Serra, as organizações acabam por promover a constituições de regimes coletivos ainda mais radicais e que desafiam profundamente a lógica do “fazer fortuna”, implícita em toda a cultura da colonização. A grande lição de resistência dessas pessoas está em mostrar que talvez a grande fortuna esteja em conseguir melhores condições para todos, com uma distribuição igualitária.

IHU – Como compreender, por um lado, a narrativa de desenvolvimento que se emprega para o norte e a Serra Gaúcha e, por outro, a narrativa de subdesenvolvimento e pobreza que se lega ao sul do Rio Grande do Sul?

Carla Menegat – Em geral, não se percebe o sul do Rio Grande do Sul como resultado de um processo migratório, o que é curioso. E não acredito que seja coincidência que em São Lourenço tenha existido uma colônia de imigrantes pomeranos que foram mantidos em relações semelhantes às da servidão que viviam na Europa antes de vir. Um processo parecido com o da escravização – mas sem a possibilidade de venda –, apenas porque outros alemães os consideravam inferiores.

Se voltarmos um pouco mais, toda a ocupação da região depende ou da imigração açoriana ou da migração de outros lugares do RS e do Brasil. E claro, de um profundo processo de assimilação e aculturação da população indígena da região e das pessoas negras que descendem daqueles que foram levados escravizados para lá, uma imigração forçada, sequestrada, da África.

A verdade é que, quando falamos de imigração, nossa cultura nos leva imediatamente a pensar na imigração europeia, especialmente essa que não é portuguesa. E essa é uma construção narrativa que faz parte do projeto começado no fim do século XIX, que não nos enganemos, se não ficou óbvio até agora, é um projeto de embranquecimento. Ao embranquecer a narrativa da sociedade gaúcha, é preciso depreciar tudo que não remete ao europeu e apagar aquele que não é o branco europeu. Por isso, nunca nos referimos a nenhum outro processo como imigração.

E, nisso, a explicação para a falta de industrialização do sul do Rio Grande do Sul vai progressivamente se tornando essa imagem de um homem que é um não branco, não europeu, que não foi capaz de dominar a natureza, que se resignou a viver nela, que é o gaúcho – e aqui eu não estou me referindo ao homem que nasce nesse estado, mas ao ser mítico que se imagina ser o gaúcho originário, que doma cavalos e vive na lida do campo. Só que este é uma figura construída para o passado.

IHU – Quais os desafios para se propor um outro olhar para a história, rasgando com essas narrativas de que o colono é o sujeito da civilização e que traz desenvolvimento para os grotões do Rio Grande do Sul?

Carla Menegat – O grande desafio está em construir uma educação para as relações étnico-raciais num estado e num país que resistem em reconhecer a identidade de raça e o letramento de raça como necessidades. Quando me manifestei sobre o assunto nas minhas redes sociais, muitas pessoas reagiram violentamente porque eu estava destruindo a identidade delas, afinal, era fácil destruir o que não me pertence.

E fui percebendo que as pessoas não conseguiam juntar meu nome e sobrenome e perceber que eu mesma sou descendente de italianos da Serra Gaúcha. Mas, depois, eu vi que de fato elas estavam certas: essa narrativa do colono não é minha identidade. Eu não acredito que honrar meus antepassados seja transformar eles em mitos. Eu acredito na honestidade que herdei deles, no meu caso foi só isso mesmo, ninguém alcançou fortuna com seu trabalho.

Meus antepassados foram pessoas que fizeram o ato corajoso de buscar uma vida num outro continente e enfrentaram muitas dificuldades, mas isso não muda o fato de que as terras que ocuparam eram terras de indígenas e que, enquanto eles compraram terras, negros e caboclos eram expulsos das que ocupavam. Assim como não muda o fato de que eu fui beneficiada toda minha vida frente a pessoas negras. Letramento racial também é aprender e reconhecer branquitude. Faltam-nos políticas públicas de memória, nos falta política educacional, nos faltam ações de história pública. E isso tem que ser política de Estado.

IHU – A sujeição de pessoas a situações de trabalho análogas às de escravidão não são uma exclusividade do sul do Brasil. Como a senhora observa outras situações de trabalho quase escravo realizado em diferentes regiões do país e que paralelo podemos fazer com o caso da Serra Gaúcha?

Carla Menegat – Realmente, não é uma exclusividade do sul do Brasil. Contudo, chama a atenção o número de pessoas que estavam sujeitas a esta condição neste caso, que corresponde a praticamente 10% de todas as pessoas libertas da mesma condição no ano anterior. Os estudos sobre escravidão contemporânea falam um pouco do padrão dessas situações e, geralmente, envolvem áreas rurais, pequenos grupos de no máximo quatro ou cinco pessoas que se encontram em situações de vulnerabilidade e que estão à margem do Estado. Essas são condições mais comuns porque favorecem dissimular a situação em trabalho legalizado.

Nesse sentido, talvez nesse caso em específico a grande diferença esteja no número de 207 resgatados e o fato de que o alojamento dessas pessoas ficava em área urbana, que aponta para o descaso das autoridades responsáveis pela fiscalização no município. A semelhança ensurdecedora está na vulnerabilidade social que leva indivíduos a atravessarem o país em troca de trabalho temporário. Fala muito das desigualdades regionais e de como elas operam inclusive na exploração do trabalho.

Afinal, por que trabalhadores locais ou de regiões mais próximas não se dispõem a trabalhar na safra da uva e da maçã? E por que tem mão de obra disponível no interior da Bahia? Inclusive, pensar em como as desigualdades regionais operam inclui pensar em como há atendimento rápido das necessidades dos resgatados pelo município de Bento Gonçalves, incluiu o envio dessas pessoas o mais rápido possível para a Bahia e que, uma vez que essas pessoas chegaram lá, imediatamente as autoridades de Bento Gonçalves assumiram que não têm mais nenhuma responsabilidade com essas pessoas. Ou seja, trabalhar na prevenção de novos casos de trabalho análogo à escravidão não inclui, para essas autoridades, pensar formas de minimizar a realidade que coloca as pessoas em situações de risco.

IHU – Hoje, fala-se em geral que a sociedade brasileira não superou sua alma escravocrata. Mas sempre vem a imagem do senhor de engenho ou das abastadas famílias do sudeste e do nordeste do Brasil. Como superar o lugar-comum e, efetivamente, mergulhar nesse espírito de um Brasil que ainda justifica o fato de subjugar populações, mulheres, minorias em geral, a ponto de os colocar em situação quase de escravidão?

Carla Menegat – Antes de mais nada, dando os nomes corretos para as situações. Precisamos entender que esse é um problema do presente e se manifesta aqui e agora. Enquanto não encaramos a realidade das relações de trabalho e continuarmos tratando de forma incerta, dúbia, abrimos espaço para a precariedade.

De outro lado, precisamos assumir responsabilidade. Autoridades precisam assumir que têm responsabilidade quando uma situação dessas acontece e realizar ações concretas de mudança. Mas precisamos responsabilizar os entes privados que estão diretamente ligados a essas situações e dela se beneficiam. Empresas que contratam terceirizadas têm a obrigação de fiscalizar as condições de trabalho e contrato de quem está a serviço da contratada. Cartas de pesar não bastam, é preciso apurar responsabilidades e impor consequências, sob pena de que perpetuemos a ideia de que a lei serve apenas para alguns. Mas, mais que tudo, o discurso de que alguns não podem ser penalizados por poucos não deve mais ser usado como pazinha que joga toda a sujeira para baixo do tapete.

Nos últimos dias, entidades patronais, autoridades locais, cidadãos comuns vêm conclamando que foram apenas três vinícolas, que era só uma empresa terceirizada, me foi dito que, veja bem, “não podem ser punidos todos os agricultores da uva, nem se pode jogar fora toda a história dos imigrantes italianos”. E aí voltamos para o começo: como pode aquele que enriquece com seu próprio trabalho precisar escravizar 207 pessoas, não em 1875, quando começa a imigração, mas 2023?

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